A inter-relação entre Design e memória
Introdução
"A memória recolhe os incontáveis fenômenos de nossa existência em um todo unitário; se não fosse a força unificadora da memória, nossa consciência se estilhaçaria em tantos fragmentos quantos os segundos já vividos". (Ewald Hering, 1920)
Explicando de forma mais simplificada, a memória pode ser caracterizada como o armazenamento de vivências, experiências, sejam elas individuais ou coletivas, e inclusive sentimentos. É por meio da memória que criamos identidade, formamos personalidades baseadas no que escolhemos ou não manter em nossa mente, e na forma que lidamos com essas informações disponibilizadas por esse recurso cognitivo. A memória nos guia cotidianamente e nos desperta sensações por vezes perdidas dentro do espaço-tempo, quando acessadas novamente, seja por meio de apenas lembranças, ou do que virá a ser o foco deste texto, objetos e/ou projetos capazes de materializar e ressignificar essas recordações, e a forma que por vezes eles são criados exatamente com esse objetivo.
Memória empírica
As memórias são parte de nós, e é através delas que construímos quem somos e quem não queremos ser, são elas que nos moldam e nos mantém em plena e profunda funcionalidade sem percalços; visto que é por meio das suas variações que conseguimos realizar atividades cotidianas. Pensemos nos afazeres diários, é através da memória de procedimento que conseguimos realizar nossos hábitos, como dirigir ou nadar; ou pensemos na nossa memória muscular, a qual nos permite realizar ações simples, como escovar os dentes, mesmo de olhos fechados, pois as experiências anteriores constantes criam lembranças corporais capazes de nos permitir realizar essas ações mesmo com nossos sentidos prejudicados.
Mediante o entendimento de que a experiência também é fundamental para o desenvolvimento das lembranças, é entendível que nem todas as experiências possuem caráter positivo, sendo algumas inclusive, responsáveis pelo surgimento de traumas. Nesta perspectiva, as memórias, de forma inconsciente na maioria dos casos, criam filtros mentais capazes de excluir essas recordações tortuosas que não são dignas de ocuparem espaço na nossa mente, sendo necessário que as esqueçamos. Assunto comentado por Susan Weinschenk em seu livro “100 things every designer needs to know about people”, em que diz:
Seu cérebro está constantemente decidindo o que lembrar e o que esquecer. Nem sempre faz decisões que você acha úteis, mas, em geral, as decisões que ele toma (principalmente não consciente) estão mantendo você vivo. (Weinschenk, 2011, pg 58, tradução pessoal.)
Portanto, é por meio dessas escolhas inconscientes de o que deve ou não ser armazenado na memória, que o cérebro nos protege de revisitar acontecimentos que nos remetem a sentimentos ruins, sentimentos esses que são capazes de influenciar toda a funcionalidade do nosso corpo e a forma como lidamos com situações internas e externas.
Entretanto nem todas as sensações geradas pelas memórias são negativas, as que ficam e são guardadas podem estocar sinuosas cargas de boas emoções. Mas como acessá-las e despertá-las de dentro de nós?
Reciclando memórias: Nostalgia
Apesar de vivermos no presente, constantemente somos levados ao passado por meio de inúmeros fatore que influenciam nossas lembranças. Seja por meio de filmes, de objetos pessoais, de comerciais antigos, da arquitetura longeva, de músicas antigas ou por meio de fotos; estamos sempre acessando pedaços da nossa história, ou da história do mundo em totalidade e atiçando sentimentos que surgem em conjunto com essas memórias; sentimentos esses que são englobados pela nostalgia.
A nostalgia é uma das ferramentas mais utilizadas atualmente quando se pensa em emocionar as pessoas a ponto de fazê-las consumir algo que seria considerado “antiquado” para o tempo atual que vivemos. É visando ativá-la, que objetos são projetados inspirados no seu Design antigo, mesclando por vezes, com características atuais, para que mesmo assim, não destoem da realidade contemporânea.
Um grande exemplo dessa situação é a vitrola, objeto criado no século XIX que até meados do fim do século XX foi o principal meio de reprodução de sons, e esteve presente na casa de inúmeras pessoas. Entretanto, com o surgimento de outros aparelhos no cenário que ocupavam mais facilmente sua posição, como os rádios, as caixas de sons e até mesmo os MP3, sua tecnologia foi ficando ultrapassada, e teoricamente a vitrola foi perdendo espaço no mercado e nas casas quando se tratava de avanços tecnológicos. Porém, aqueles que conviveram com a vitrola durante sua juventude, por vezes guardam um apego emocional pelo objeto, o que os impede de abandoná-la por completo. Foi sob esse cenário que a indústria começou a investir novamente na vitrola, modificando seu design, seja estruturalmente ou mesmo na sua funcionalidade. Hoje existem vitrolas de formatos variados dos que ela possuía inicialmente, sendo a exemplo deles a vitrola da marca Raveo que remete a uma maleta, o que facilita sua locomoção, além de agora elas possuírem recursos avançados, como a presença de bluetooth e cabos USB, visando justamente uma adequação maior com os objetos recentes. Assim, com um design mais atual mesmo sem perder sua essência, a vitrola atiça a nostalgia nas pessoas, as convencendo que sua presença ainda é necessária, e gerando comoção nos que as obtém com intenções de manter suas lembranças vivas e materializadas.
Os objetos são um suporte de memória, e é em em vista desse fator, que muitos projetos são arquitetados para se adequarem ao mantimento dessas emoções, que por vezes achamos estarem perdidas; é uma influência mútua, pois enquanto o design busca na nostalgia uma fonte de inspiração para criar objetos que remetam ao antigo; são esses projetos que causam comoção nas pessoas a ponto de querer consumi-los.
Nada pode ser considerado ultrapassado se em sua projeção atual, ele possa ser repensado de modo a adequá-lo aos padrões atuais, mas sem perder sua essência. Pensemos na moda, essa que é considerada por muitos especialistas como cíclica, o que significa que o que é usado hoje, daqui a 10 anos talvez seja considerado “brega”, mas em 20 anos no futuro pode voltar repaginado e acordante com o que se está sendo usado no período. Assunto comentado por Rafael Cardoso, em seu livro “Design para um mundo complexo”:
No mundo da moda, então, o retrô é um fenômeno incontornável. Quanto mais se revive o passado estilístico nas roupas, mais as épocas e os estilos acabam por se confundir. (Cardoso, 2011, pg 36)
Atualmente isso ocorre com as sapatilhas, que no início dos anos 2000 eram sensação entre os usuários, mas sofreu um declínio durante os anos 2010, e agora, após 20 anos, elas voltam ao mercado, com seu design atualizado e voltando a virar febre entre os consumidores assíduos de moda. Entretanto, um ponto relevante a ser comentado é que nem sempre os modelos antigos são plenamente abandonados, pois sempre há pessoas que se apegam emocionalmente ao objeto antigo, e não se desvinculam mesmo estando “fora de moda”, pois há casos que eles viram lembranças de momentos ou até pessoas queridas, sendo impossível de serem largados por completo.
O design e a instabilidade da memória
A memória é mais construída do que acessada, e sempre impressiona a capacidade humana de lembrar o que quer e de esquecer o que não quer. Há controvérsias quanto às memórias, especialmente quando elas são coletivas e não individuais. Não é de surpreender, portanto, que as pessoas recorram aos objetos como suportes de memória. (Cardoso, 2011, pg 35)
Como dito por Rafael Cardoso em seu livro, “Design para um mundo complexo”, nossas memórias não são estáveis, na maioria dos casos elas são escorregadias, e facilmente confundíveis, a ponto de jurarmos de pés juntos que algum fato é verídico, até nos comprovarem de que não é. Esse fenômeno ocorre muitas vezes por influência de fortes emoções, ou influência da memória coletiva. Um grande exemplo dessa falha mental, é o conhecido “Efeito Mandela”, fenômeno que afetou diversas pessoas que acreditavam fielmente que Nelson Mandela, líder assíduo na luta contra o racismo na África do Sul, teria supostamente morrido em 1980 durante sua prisão, quando na verdade seu falecimento só veio a ocorrer em dezembro de 2013. Essa espécie de “delírio coletivo” não ocorreu só no caso de Mandela, mas também ocorre até hoje em âmbitos diferentes, como no design do personagem Pikachu, da série de jogos eletrônicos “Pokémon”, em que a grande maioria das pessoas acredita haver uma mancha preta no final do rabo do personagem, quando na verdade seu rabo é completamente amarelo.
Após essas análises, é nítido a incongruência que nossas lembranças podem ter, influenciadas por diversos fatores. É nessa perspectiva que o design aparece como um auxiliador de mantimento de memórias, quando as materializamos em objetos e/ou projetos, mantemos essas memórias vivas e concretas, de modo que acessá-las se torna mais fácil e confiável, sem que ocorra uma perda significativa delas dentro do espaço-tempo.
A arquitetura é um grande exemplo de mantimento de histórias, pois quando alguma construção é tombada, a memória presente naquela edificação se mantém viva, e mesmo que sofra alterações com intuitos de conservação durante o tempo, sua essência, história e estrutura se mantém presente, deixando evidente formas, cores, estruturas e estilos que um dia já abrigaram ideias e gostos antigos, além de memórias de vidas passadas que construíram o que hoje é aquela determinada localidade. Os prédios e casas antigas do bairro de Cidade Alta, em Natal/RN, que hoje estão em processo de preservação, são um bom exemplo de como a arquitetura antiga pode se manter presente e contar a história de uma cidade desde seu princípio, deixando assim materializada as recordações que poderiam ser perdidas se seu design fosse abandonado e deixado apenas no pretérito.
Dessa forma, é entendível que o design e a memória estão intimamente interligados, sem que se possa pensar em um sem atrelar mesmo que minimamente ao outro, visto que, as lembranças são amplamente utilizadas nos projetos de design, seja como referência de métodos eficazes, já que hoje pensamos em novos projetos tendo em vista no que deu ou não certo no passado, buscando resolver antigos problemas, ou aproveitar das soluções já criadas; seja na busca de evocar e materializar as memórias por meio de designs que garantam essas sensações nas pessoas.
Referências
CARDOSO, Rafael, Design para um mundo complexo, São Paulo, Cosac & Naify, 2011.
WEINSCHENK, Susan, 100 things every designer needs to know about people, New Riders, 2011
JÚNIOR, Carlos Alberto Mourão; FARIA, Nicole Costa, Memória, Artigo - Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG, Brasil, 2015. https://www.scielo.br/j/prc/a/kpHrP364B3x94KcHpCkVkQM/?lang=pt# Acesso em: 18 de agosto de 2024.
SOUZA, Aline Batista de; SALGADO, Tania Denise Miskinis, Memória, aprendizagem, emoções e inteligência, Revista Liberato, Novo Hamburgo, v.16, n. 26, p. 101-220, jul/dez, 2015.
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